quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Singularidade

O conceito de singularidade do livro de Ray Kurzweil tem a ver com um momento em que a tecnologia começa a se auto melhorar de forma exponencial, e a partir daí o mundo fica incompreensível sob a nossa perspectiva atual.

Já neste texto, o significado de singularidade é diferente: elas aconteceram de forma recorrente na história da humanidade, se materializando em saltos que alteraram a própria natureza da sociedade.

Por exemplo, pode ter ocorrido uma singularidade quando o ancestral do ser humano desenvolveu habilidades que o separaram dos demais habitantes do planeta, como a capacidade de aprender com as gerações anteriores, e construir novas tecnologias a partir daí.

Isto claramente representou uma quebra de paradigma, permitindo a evolução exponencial. Sem essa capacidade, uma espécie animal podia viver milhões de anos com pouquíssimas mudanças, padecendo dos mesmos problemas de sempre. A partir do momento em que o humano conseguiu conscientemente melhorar aquilo que lhe foi ensinado pelos outros, em 100.000 anos saímos da idade da pedra para a idade dos chips.

Outra singularidade foi a invenção da imprensa. Hoje não temos acesso às obras de Homero, Platão e Arquimedes. Apenas fragmentos. A maior parte dos textos originais foi perdida. O que chegou até nós era transmitido oralmente ao longo dos séculos, ou copiado e recopiado manualmente, sempre com risco de alteração ou destruição. Mas, a partir da imprensa, um número arbitrário de cópias se tornou possível, e qualquer texto produzido a partir de então que tenha atingido um nível mínimo de importância chegou até os dias atuais intacto.

O compartilhamento de mídias na internet representa outra singularidade. Se antes era quase impossível que a opinião de um brasileiro comum chegasse até um japonês, agora isso é instantâneo. Todos podem disponibilizar publicamente textos, imagens e sons, que ficam acessíveis instantaneamente em qualquer lugar do mundo. Ou seja, antes o que era incerto e lento, agora é garantido e imediato. O tempo de compartilhamento de mídias foi reduzido para zero, e o tamanho das informações compartilháveis é virtualmente ilimitado. Todos têm acesso a todo o conteúdo que já foi produzido pela humanidade com alguns cliques.

De forma semelhante, com a invenção do smartphone e da disponibilização massiva de serviços online, tudo mudou novamente. As modas se propagam instantaneamente por todo o planeta. Os padrões de qualidade e objetos de desejo se tornaram mais ou menos os mesmos em qualquer lugar. Todos podem avaliar tudo, e com isso influenciar os demais. Opiniões de especialistas em qualquer assunto podem ser acessadas igualmente por todos, não existindo mais ilhas ou monopólios de conhecimento.

O próximo exemplo talvez seja a produção automatizada de conteúdo. Textos comentando todo e qualquer assunto inundarão cada centímetro quadrado do mundo digital. Existirão mais reportagens e notícias diferentes sobre cada assunto do que leitores. Marcas poderão abarrotar as redes com comentários "orgânicos" e réplicas personalizadas a reclamações. Dublagens, "stock photos", perfis temáticos em redes sociais, tudo será produzido à exaustão com custos irrisórios.

Então não é só quando a tecnologia conseguir se auto aperfeiçoar que haverá um salto exponencial. Ele já ocorreu várias vezes e continuará acontecendo, a cada vez que alguma tecnologia tornar preciso algo que era impreciso, ou instantâneo algo que demorava algum tempo.


sábado, 20 de setembro de 2025

A grandiosidade do ser humano

Como o homo sapiens pode ser tão incrível?

Todas as bilhões de pessoas do mundo, mais as 100 bilhões que já viveram no planeta nos últimos 50.000 anos, demonstram enormes habilidades.

Imagine a complexidade de dirigir um veículo. É preciso estar atento a uma enorme quantidade de variáveis a cada instante, além de ter um senso de localização que demanda a construção de um mapa mental. E um bilhão de pessoas fazem tudo isso sem muito esforço, em qualquer cidade de qualquer país.

E como os humanos conseguem tocar instrumentos musicais? Como um baterista sabe exatamente em que instante precisa bater em cada tambor, a uma velocidade assustadora, em centenas de músicas diferentes? Como os humanos conseguem memorizar letras de músicas após ouvi-las poucas vezes?

Quando vemos uma pessoa competente fazer um discurso, em poucos minutos ela consegue abordar assuntos extremamente diversos e abstratos, como filosofia, saúde, cotidiano, política, arte, estrutura organizacional das empresas. E todo mundo acompanha perfeitamente.

Em qualquer cidade do mundo, há alguém capaz de construir uma casa, consertar um carro ou tocar um violão.

Como um humano médio consegue transitar entre tantos temas profundos e complexos, cheios de edifícios conceituais, de forma natural? Produzir metáforas, generalizações abstratas, criar universos fantásticos, dominar a cultura pop, arquitetar planos grandiosos, cozinhar pratos de qualquer culinária?


Muito autor para pouco tempo coletivo disponível?

O que os professores mais querem são alunos atentos, receptivos à sua proposta pedagógica, e que fiquem satisfeitos com sua cuidadosa didática. Que maravilha uma plateia ouvindo atentamente suas teorias, piadas e reclamações

O que os músicos querem é que o público entre em êxtase coletivo ao som de sua música. Prova desse desejo é a imensa concorrência para ser gravado e ouvido

O que os escritores querem é que leitores passem horas imersos no mundo que criaram, e fiquem maravilhados com suas analogias perspicazes. Muitos autores dispendem consideráveis valores do próprio bolso em autolançamentos não solicitados

O que os Youtubers querem, além do dinheiro, é que o máximo possível de pessoas fique até o fim do vídeo e achem seu conteúdo útil

O que os podcasters querem é que os ouvintes dediquem horas para escutar atentamente suas intermináveis conversas


Talvez a produção de conteúdo seja muito mais prolífica do que a necessidade da humanidade

Tudo isso é apenas vaidade?

É uma necessidade de deixar um legado objetivo que transcenda o tempo da vida daquele que se expressa?

É para tentar estabelecer uma conexão com as pessoas, de forma que elas sintam o mesmo prazer que o criador do conteúdo sentiu durante o processo de criação?

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Como satisfazer a necessidade humana de expressar sua criatividade, se não há como todo mundo ter um público?

Produzir uma obra considerando que jamais será conhecida por nenhuma outra pessoa é algo válido, ou um ato absurdo?

Do ponto de vista do consumo de conteúdo, é melhor se dedicar às obras canônicas, que são antigas e universais? Ou é mais significativo se dedicar aos conteúdos produzidos por pessoas contemporâneas e locais, muitas vezes conhecidas, ainda que não atinjam o mesmo nível de profundidade dos clássicos?


segunda-feira, 12 de maio de 2025

Novos aforismos

Nas ciências sociais, a exceção comprova a regra; nas ciências extas, invalida a regra.

Livros de citações são o TikTok dos intelectuais.

Se uma pessoa só aprende verdadeiramente algo quando ensina, então, para que todos aprendam, é necessário que todos ensinem, mas aí faltariam alunos.

O pensador escreve o livro para si mesmo, pois, para seus leitores, seria melhor se estivessem ocupados escrevendo seus próprios livros.

Chega uma hora em que escrever é mais produtivo que ler.

Quando você acaba de comer é fácil pensar em começar uma dieta.

Em um mar de processos a burocracia navega, nunca podendo esquecer que é apenas o barco e não o destino.

Cada palavra supérflua redigida em um parecer e cada segundo consumido pelos rituais de uma reunião são pedaços da vida do servidor público tragados pela força gravitacional da burocracia estatal, a qual inexoravelmente se retroalimenta até colapsar, quando se torna um fim em si mesma.


Citações - Parte 3

O tempo que você gosta de perder não é tempo perdido - Marthe Troly-Curtin

Há duas maneiras de chegar em casa; e uma delas é permanecer lá. A outra é dar a volta no mundo inteiro até retornarmos ao mesmo lugar - Chesterton

Nada é suficiente para quem o suficiente é pouco - Epicuro

A verdadeira jornada da descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos - Marcel Proust

Todos nós devemos sofrer uma das duas dores: a dor da disciplina ou a dor do arrependimento. A diferença é que a disciplina pesa gramas, enquanto o arrependimento pesa toneladas - Jim Rohn

A forma mais invisível do tempo perdido é fazer um bom trabalho numa tarefa sem importância - James Clear

Somos culpados pelo que fazemos, mas não pelo que sentimos - Rubem Alves

A vida não pode ser economizada para amanhã. Acontece sempre no presente - Rubem Alves

Os turistas não sabem onde estiveram; os viajantes não sabem para onde estão indo - Paul Theroux


Simplicidade

A simplicidade é o último grau da sofisticação - Leonardo da Vinci

Para todo problema complexo existe uma solução simples, elegante e errada - paráfrase de citação de H. L. Mencken

Na mente do principiante há muitas possibilidades; na mente do especialista há poucas - Shunryu Suzuki

Tudo deve ser feito tão simples quanto possível; mas não mais simples que isso - atribuída a Einstein

Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade com muito trabalho - Clarice Lispector


Especialista e generalista

A jack of all trades is a master of none, but oftentimes better than a master of one

Não ver a floresta por causa das árvores.

Se você olha a floresta, você não vê as árvores

Especialização é para insetos - Robert Heinlein

O especialista aprende mais e mais sobre menos e menos, até que ele finalmente conhece tudo sobre nada - Konrad Lorenz

O generalista é alguém que sabe menos e menos sobre mais e mais, até que eventualmente ele não sabe nada sobre tudo - Nicholas Butler

sábado, 13 de julho de 2024

Por que desconfio dos livros de ficção?

Sabemos que a confiabilidade do ChatGPT, ou qualquer outro modelo generativo, não é grande. Eles são especialistas em produzir textos que parecem reais, e em responder perguntas com confiança.

Mais ou menos como um político citando fatos e números, cuspindo grandes quantidades de informações importantes, mas difíceis de serem comprovadas de pronto.

Matematicamente, para um texto verdadeiro e preciso, é possível escrever milhões de variações igualmente convincentes, mas erradas. Ou seja, se houver aleatoriedade, a chance de sermos enganados nos detalhes é considerável.

Mas meu objetivo não é falar sobre estes modelos, e sim sobre livros normais. O ChatGPT é uma revolução que explodiu na década de 2020, enquanto os romances existem há milênios.

O meu ponto é que essas ficções todas podem padecer dos mesmos problemas que os modelos artificiais de linguagem. As chamadas alucinações, que parecem ser um problema novo para a humanidade, talvez já existam desde sempre. Neste caso, sempre fomos enganados por sutilezas.

Eu me refiro especificamente à construção psicológica dos personagens de um livro. Podem ser profundos, interessantes. Mas será que poderiam ser reais?

Um livro não é a realidade, apenas a imaginação do escritor. E esse escritor tem muitos objetivos ao fazer um personagem. Precisa criar uma personalidade interessante, que se encaixe na história, e tenha características com as quais o leitor se identifique.

Construir um personagem é um cálculo complexo, como achar uma peça que se encaixe em um grande quebra-cabeças.

Mas esse não é o principal problema. A questão é que não basta o autor saber escrever bem, nem ter pesquisado fatos históricos para enriquecer a história. Para que os personagens sejam realistas, o autor precisa ser um profundo conhecedor da psicologia humana.

E acho que essa é a grande questão.

Claro que não me refiro aqui a Shakespeare ou aos grandes escritores russos, que são elogiados justamente por seu conhecimento da natureza humana. Tampouco me refiro aos personagens "arquétipos", cujo objetivo é ser um modelo para o leitor se espelhar, explorando a fronteira do impossível.

Me refiro aos autores de best-sellers modernos, de histórias de detetive, dos textos analisados nos clubes do livro.

Em geral, os personagens não me parecem muito realistas. Costumam ter uma obstinação fora do normal, ou saber bem demais o que querem, ou ter comportamentos improváveis, ou capacidades que não são do homem médio e talvez de nenhum homem.

Claro que, para o leitor mais interessado no suspense da história, na criatividade do romance, na viagem mental que a literatura proporciona, tudo isso pode ser secundário.

Mas, como ler um livro é algo que demanda tanto tempo,  e algo que deveria trazer conhecimento, faz sentido achar normal um personagem que jamais existiria na vida real?

Concluindo, acho que os autores têm o incentivo para produzir pessoas apenas críveis, que pareçam reais, mesmo que talvez sejam impossíveis de existir na vida real. Tal como o ChatGPT.

O leitor pensa estar diante de uma obra de "arte que imita a vida", mas está apenas lendo um Frankenstein de características psicológicas misturadas, que por fim resulta em um mundo artificial.

 

sábado, 13 de maio de 2023

O pensador

Era uma vez um homem cuja especialidade era pensar.

A mulher o convidava para fazerem atividades juntos, mas muitas vezes ele negava, pois ficaria em casa pensando.

Também era comum recusar quando os amigos o chamavam para confraternizações. Afinal ele trabalhava a semana toda, e quando tinha tempo livre, precisava aproveitar para pensar.

- Pensou muito hoje? - perguntava a mulher quando voltava para casa

- Sim, hoje foi bastante produtivo.

A mulher tinha orgulho do marido, pois claramente se diferenciava dos outros homens, que preferiam fazer atividades comuns, como churrasco ou jogar alguma coisa. Certamente era muito inteligente. Não conversava muito, provavelmente porque não gostava de assuntos banais.

Como a mulher tinha interesses mais mundanos, não perguntava muito para o marido como estava se desenvolvendo o seu raciocínio. Mas ela sabia que a qualquer momento ele faria algo grandioso, como uma descoberta ou uma iluminação filosófica.

Inclusive relatou para suas comadres que era casada com um gênio, que estava sempre pensando.

Não tardou até que uma das amigas, curiosa com a situação, interpelasse o nosso herói:

- Mas afinal, em que assunto você fica pensando tanto?

- Bem, em teorias científicas, metafísica, em como seria a vida ideal, essas coisas.

- Certo, mas o que especificamente você descobriu até agora? Me fale alguma coisa que você tenha pensado ultimamente.

- Eu gosto muito de pensar, mas não sou bom com discursos. Acho que não consigo traduzir para você o que eu já pensei. São assuntos muito complexos, que fazem sentido na minha mente, mas ainda não consigo transformá-los em palavras. Até se eu tentar escrever vai parecer algo superficial e inconsistente, inclusive meio clichê. Por isso prefiro continuar pensando, que é o que faço de melhor.